Crédito: Marina Garcia / Legenda: roda sobre Mulheres dentro dos Movimentos Sociais no CCA Lagoa
Era uma manhã de sábado do mês de maio e nos encontrávamos perdidas por entre as ruas estreitas que começavam e desembocavam em três ou mais caminhos diferentes na Cidade Heliópolis. Paramos para pedir informação a uma mulher, queríamos chegar ao CCA Lagoa (Centro para Crianças e Adolescentes), onde o Movimento de Mulheres do bairro se reunia. Muito simpática, ela fez questão de nos levar até lá. De acordo com ela, as ruas começam e não terminam dentro do Heliópolis, sem que ela nos guiasse poderíamos levar horas até nos achar.
Quando entramos no CCA – que lembrava uma escola infantil, com as paredes cheias de cartolinas desenhadas e coloridas – nos surpreendemos com a quantidade de mulheres que ocupavam aquele espaço. Eram mais de vinte que conversavam em forma de roda. Em uma sala lateral, seus filhos e filhas brincavam entre si.
O Movimento de Mulheres do Heliópolis e Região se reúne todo primeiro sábado do mês para discutir uma pauta específica. Naquele encontro o tema era A Mulher dentro dos Movimentos Sociais, assunto caro ao coletivo que iniciou a militância de mulheres no bairro há quatro anos. Os encontros são feitos em três etapas: primeiro uma roda de conversa sobre o assunto, depois uma divisão de grupos para realizar dinâmicas e apresentações sobre o que foi discutido e ao final uma roda pra falar sobre o que foi apresentado pelas integrantes.
Crédito: Marina Garcia / Legenda: Discussão sobre o tema Mulheres dentro dos Movimentos Sociais no CCA Lagoa
Neste sábado, as mulheres conversaram e desabafaram bastante sobre o processo de Impeachment da presidenta eleita Dilma Rousseff – que havia passado pela Câmara dos Deputados em abril e aguardava o parecer do Senado que seria feito alguns dias após o encontro. Todas eram contra o processo, que chamavam de golpe, e fizeram dinâmicas sobre a importância do papel da mulher dentro da política.
Fonte:Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc)
O coletivo é grande, composto por mais de cinquenta mulheres que frequentam e participam dos debates e coordenado por dezessete delas. Mayara, auxiliar administrativa de 25 anos e uma das coordenadoras, diz que algumas ações do Movimento chegam a reunir mais de 100 mulheres de todo Heliópolis, como o “lanternaço” que elas organizaram em 2014 para reivindicar o direito à iluminação nas ruas, uma pauta urgente para a segurança das mulheres no bairro.
A formação do Heliópolis e a articulação política das mulheres
Crédito: divulgação / legenda: Formação do Movimento de Mulheres em 2012
A história do Movimento é antiga e está intimamente ligada à luta por moradia na formação do Heliópolis. Conversamos com Antonia Cleide, atual presidenta da UNAS (União de Núcleos, Associações dos Moradores de Heliópolis e Região), de 52 anos, que nos contou sobre a ligação da entidade não só com o Movimento de Mulheres, mas com grande parte da movimentação política do bairro.
Nordestina, ela veio do Ceará com a família para morar em São Paulo aos cinco anos de idade. Em 1984, aos 17, entrou para a Comissão de Moradores do bairro – um movimento de moradia que borbulhava já há muitos anos dentro do Heliópolis – para lutar pelo direito de ter uma casa. Ela, os quatro irmãos, a mãe e o pai viviam em barracos no que eles chamavam de alojamento.
O embate e a luta do movimento de moradia do Heliópolis com o prefeito da época, Jânio Quadros, era muito forte, de acordo com Cleide. Chegaram a conseguir que ele canalizasse três córregos que enchiam no bairro, com muito custo. Contudo em 1988, já em seu último ano de mandato, o prefeito renega o movimento de moradia: “ele disse que a gente era clandestino e que não ouviria mais as nossas demandas. Foi quando nos reunimos e fundamos a UNAS, uma entidade sem fins lucrativos e declarada de Utilidade Pública”.
A UNAS, portanto, foi criada pela necessidade de uma ferramenta de luta para pressionar o governo com mais força. Cleide, que é a primeira presidenta da entidade – com eleições a cada quatro anos –, conta que o mandato de Erundina em 1989 foi essencial para o fortalecimento da entidade e para fazer convênios muito importantes, como o MOVA (Movimento de Alfabetização de Jovens e Adultos), programa idealizado por Paulo Freire, secretário municipal de educação da época, para alfabetizar jovens e adultos que haviam deixado a escola.
Em 1989 o analfabetismo atingia um milhão de pessoas com 15 anos ou mais sem estudo e outros 2,5 milhões de jovens e adultos com menos de quatro anos de estudo em São Paulo – o que era mais um elemento de exclusão política e social.
Cleide conta que, na época, cerca de 40% das pessoas no Heliópolis eram analfabetas e que foram montadas 16 salas de alfabetização para jovens e adultos na comunidade: “A gente tinha saído de uma ditadura há pouco tempo e foi fundamental pra gente conseguir promover cidadania, em nível de direitos básicos e do desenvolvimento da comunidade mesmo”.
Ao final de 1991, o MOVA já contava com 71 entidades conveniadas e aproximadamente mil núcleos de alfabetização. O programa existiu até o fim da administração de Luiza Erundina, em 1992, e alfabetizou quase vinte mil alunos.
Conectando o histórico da UNAS com o Movimento de Mulheres, Cleide relembra que foram sempre as mulheres que estiverem na linha de frente das manifestações populares, demonstrando insatisfação e pensando em novas formas de lutar. “Era a mulherada que se reunia, desde 1971, no que elas chamavam de Clube de Mães, pra debater as questões de moradia daquela época. Depois a gente que ia falar com prefeito, ia pra luta mesmo”.
Em 1991, a migrante nordestina finalmente conseguiu construir sua casa e disse que não podia parar ai. “Eu precisava continuar lutando, porque a gente tinha assembleias com duas mil e quinhentas pessoas, e nem todas elas tinham conseguido casa também. Eu não podia parar até que todas tivessem”.
Crédito: divulgação / Legenda: Cleide em manifestação no bairro do Heliópolis
A luta por moradia no Heliópolis foi tomando força ao longo dos anos e ao mesmo tempo dando espaço para que outros eixos começassem a ser discutidos dentro da organização da UNAS. Foi a partir da análise e compreensão sobre o que a comunidade estava precisando, que o Movimento de Mulheres foi criado em 2012. “Ainda é muito novo, infelizmente”, conta Cleide, “mas já fez bastante mudança desde que começou. A gente começou a perceber que era preciso debater violência doméstica, já que tantas companheiras estavam passando por isso. Além de outras violências que não são naturais, mas são colocadas assim”.
Outros eixos também foram surgindo com o passar dos anos, e a UNAS hoje conta com treze deles, fora o Movimento de Mulheres e de Moradia: o Negro, de Juventude, Comunicação, Saúde, LGBT, Cultura, Esporte, Educação, Fé e Política, Assistência Social e Empreendedorismo.
O trabalho de formiguinha na militância feminista
Para dar continuidade à história do Movimento de Mulheres, conversamos com uma das coordenadoras, Indira Santos, que é educadora social em um dos CCAs, na região Imperador, e tem 21 anos. Ela nos recebeu em sua casa, no Heliópolis, onde mora há quatro meses com sua companheira Priscila, de 23, que trabalha como auxiliar administrativa no SMSE-MA Sacomã (Serviço de Medida Socioeducativa em Meio Aberto) – e que também faz parte da UNAS.
Indira conta que além das reuniões mensais, a militância do Movimento de Mulheres é, em suas palavras, um trabalho de formiguinha dentro de diversos espaços políticos e educativos no Heliópolis. Assim, os CCAs entram como um espaço chave para o trabalho de base do Movimento. Em todas as onze unidades divididas pelo bairro, que tem cerca de 200 mil habitantes, há ao menos um representante de cada Movimento. A ideia é que essas pessoas possam ajudar a formar o plano pedagógico que será trabalhado com as crianças, e assim conseguir dialogar assuntos como feminismo, negritude, intolerância religiosa, educação sexual, questões LGBT e assim por diante.
Crédito: divulgação / Legenda: Movimento de Mulheres do Heliópolis em um evento numa escola do bairro
Os CCAs funcionam como centros de educação informal, complementares à escola. A prefeitura de São Paulo libera uma verba para o CRAS (Centro de Referência de Assistência Social) e ele redireciona uma parte para UNAS, que a divide entre os CCAs e organiza quem serão as educadoras, coordenadoras e gestoras. No entanto, existem outros Centros, ligados às igrejas do bairro, que não fazem parte da UNAS.
Cada núcleo atende de 120 a 180 crianças e adolescentes, com idades entre 6 e 14 anos. Elas frequentam a escola em horário de aula e passam a tarde o a manhã no CCA. Mesmo não sendo um espaço obrigatório, Indira diz que as crianças vão porque as atividades propostas são interessantes e tem alimentação gratuita.
O método de ensino utilizado, segundo Indira, é inspirado em Paulo Freire: “a gente aprende junto com as outras crianças e pensamos a partir da realidade delas. Se eu der uma aula de arte, por exemplo, vou pegar um grafite ou pichações e pensar com eles como aquilo se transforma em arte, o que aquela manifestação representa e tudo mais”, explica.
Todas as atividades realizadas nos Centros são feitas com pessoas da própria comunidade. Indira comenta que se uma aula for sobre saúde, eles não vão chamar uma pessoa que faz medicina e é de fora, mas uma menina que trabalha na UBS (Unidade Básica de Saúde), que é a unidade de saúde que está perto da realidade daquelas crianças.
Infelizmente a UNAS não tem um projeto com enfoque no adolescente que sai do CCA aos 15 anos. Indira lamenta, porque o tráfico de drogas é muito forte dentro da comunidade e muitas crianças acabam saindo do CCA e se envolvendo com isso. No entanto, ela diz que algumas se interessam tanto pelo projeto que querem se formar para voltar como educadoras.
A formação política e feminista nas trocas com as crianças e adolescentes
Crédito: divulgação / Legenda: Mulheres do Movimento em frente ao CCA Lagoa
Os CCAs acabam sendo espaços de formação política e cidadã de crianças e justamente por isso são tão fundamentais para o Movimento de Mulheres. Indira conta que conversar diretamente com as crianças e adolescentes sobre o que é feminismo é revolucionário, porque elas mesmas já começam a perceber o que tem de errado em seu cotidiano e começam a questionar esses padrões de comportamento.
Semanalmente eles fazem roda de conversas para dialogar os problemas que tiveram, seja de bullying, racismo ou machismo. “Essas rodas são muito interessantes, porque as próprias crianças entendem e conversam sobre o que é errado fazer e estabelecem as regras de convivência entre si”, conta.
Parte importante do método educacional consiste em que eles também montem as regras do CCA: “estávamos tendo problemas com as filas no banheiro. Como são vinte meninas para dez meninos, os banheiros femininos ficavam sempre lotados. O que as crianças fizeram? Numa destas rodas de conversa, combinaram que os banheiros seriam ‘unissex’. Eles mesmos fizeram uma plaquinha com folha de sulfite e colocaram nas portas”.
Legenda: Foto da porta do banheiro do CCA Imperador. Divugação: Indira Santos
O processo pela quebra da desigualdade de gênero é feito em todas as instâncias, desde entender assuntos mais pesados como o que é violência sexual, até identificar tratamentos que diminuem meninas, as colocando como seres inferiores. Ela nos conta que com as crianças dos 6 aos 10 anos, é mais complicado abordar violência sexual e doméstica, mas que procura outras formas, mais leves, de entrar no assunto e mostrar que a menina tem que estar em pé de igualdade ao menino:
“Eles reproduzem muito a violência que veem, escutam e convivem dentro de casa. O mais comum é contarem sobre o pai que está preso ou sobre a mãe que apanha quase todo dia. Isso é muito recorrente e quando eles trazem esses assuntos, a gente conversa sobre. No mais, fazemos brincadeiras pra mostrar que meninas e meninos podem brincar de qualquer coisa, tanto videogame como boneca. Incentivamos que todas as crianças usem todos os brinquedos”.
A maior parte das crianças e adolescentes no CCAs é negra, porém Indira diz que essa identificação é difícil para eles já que o racismo ainda é muito forte. Ela conta que o único dia em que chorou em uma sala de aula, durante dois anos lecionando, foi quando um aluno de oito anos falou que não queria mais ir para escola dele porque uma menina loira o chamava de “macaco favelado”.
“Nesse dia eu desmontei porque é triste demais ver essa violência reproduzida desde tão cedo. Mas a questão do racismo é fundamental para o debate feminista, principalmente dentro da periferia, por isso a gente discute muito sobre o assunto. Desde conhecer e entender a cultura africana, até a compreensão que ‘cor de pele’ não é cor de lápis, porque existem diferentes tonalidades de pele”.
O preconceito com o que foge à regra também não escapa do convívio dessas crianças. Indira conta que tem um menino em uma das salas do CCA de apenas 8 anos que tem trejeitos afeminados, “mas não tem nem idade pra saber se é ou não gay”. Ele vinha sofrendo violência dos outros colegas, que o chamavam de “viado” em tom pejorativo. Além disso, tem uma criança de 6 anos que é filha de um casal de mulheres, e depois de conversar com as mães dela, ela resolveu se declarar lésbica e pautar o assunto com os pequenos.
A pedagoga propôs rodas de conversa e atividades pra entender da onde vem esse ódio e tentar desconstruir esse tipo de pensamento. “Isso aconteceu comigo, sabe? Quando eu era criança me chamavam de ‘maria macho’ porque eu usava roupas que não são consideradas femininas. O que me ajudou muito na época foi ter uma educadora incrível que era lésbica e quebrava com a feminilidade. Então quando me chamavam de sapatão, eu consegui transformar isso em algo positivo, porque me comparava com ela e eu a adorava”.
É interessante como cutucar essas estruturas machistas, homofóbicas e racistas promovem outras dinâmicas de comportamento. “Com os pequenos é bonitinho, porque eles passam a defender uns aos outros. Se alguém chama o outro de ‘viado’, eles vão e falam que isso não é um problema e que a vida é dele. Se não deixam uma menina jogar futebol, eles reclamam e tentam resolver. Xingamentos racistas acontecem muito raramente, porque eles já sabem que isso é algo inadmissível. E não é por medo ou apenas por seguir uma regra, é por terem compreendido o motivo daquilo ser errado. Acho que são pequenas mudanças que podem surtir efeito na formação deles”, conta.
Com os adolescentes de 13 e 14 anos, Indira diz que consegue puxar um debate mais sério a partir do que eles veem na TV ou na internet: “As meninas e os meninos trazem casos de violência que tiveram repercussão e a gente discute sobre isso, sobre quão próximo da gente essas questões estão e como reproduzimos violência sem perceber, porque está dado como natural”.
A relação entre maternidade e feminismo
No Dia dos Pais deste ano, ela fez uma roda muito intensa e profunda com os adolescentes, na qual eles debateram o que seus pais representavam em suas vidas. “Foi bem pesado porque em sua maioria o pai tá preso, fugiu, abandonou a mãe e não assumiu a criança ou não sabem quem é o pai... Então a roda foi interessante pra pensar nas configurações de família, o que levou ao debate sobre o que as mães deles significavam, e consequentemente sobre o que é ser mulher”.
Neste dia, a educadora social apresentou aos alunos a configuração da sua família: “eu pedi para que eles desenhassem suas famílias e desenhei a minha, eu, minha mãe, meu pai, a gata, a Priscila e a filha dela, Mikaela”. Isso suscitou uma série de perguntas tanto sobre a companheira de Indira, como sobre a filha dela. Ela nos disse que foi positivo e surpreendente quebrar o tabu sobre o assunto: “expliquei pra eles com naturalidade e eles acabaram levando numa boa”.
Conversando com a Priscila a respeito de sua filha, que hoje tem sete anos, ela nos contou que teve Mikaela aos 16 e pela falta de apoio de seus pais teve que sair de casa. A filha foi morar com o pai, na periferia de São Bernardo, há dois anos. Depois que a avó de Priscila morreu, ela disse que não teve opção: “ou eu trabalhava pra sustentar nós duas, ou ficava com ela e vivia de luz. Não tinha condição de ficar com ela com 300 reais de pensão por mês”.
Agora que Priscila está bem estabelecida, conseguiu terminar o colégio, está trabalhando e fazendo faculdade, a filha vai vir morar com as duas. “Hoje eu consigo reconhecer que fazer isso foi um ato de coragem, mas eu me culpei durante muito tempo. Tive uma depressão forte porque me achava a pior mãe do mundo. Além do meu próprio pesar, mesmo sabendo que não tinha outro jeito na época, tive que ouvir muita barbaridade, coisas como: ‘deixou a filha porque só pensa na namorada, porque não quer nada da vida, porque é sapatão’, foi muito difícil”.
O casal conta que só a partir do final do ano, quando Mikaela for morar com elas, que elas vão saber como vai ser a convivência diária com a menina. Mas afirmam que ela gosta de Indira, e trata a questão delas namorarem com naturalidade, apesar de ter um pouco de ciúmes, “o que eu acho natural, eu também tinha da madrasta do meu pai na idade dela”, conta Priscila.
Conversando sobre a relação de mães e filhas, Indira conta que quem a levou para as reuniões do Movimento foi sua mãe, Mercia, que hoje tem sessenta anos e coordena o SMSE, onde Priscila trabalha. “Minha mãe é demais, ela é uma das coordenadoras também. Ela não queria me deixar sozinha em casa aos sábados e me levava com ela. E eu amei muito o que aquelas mulheres estavam organizando, comecei a entender que aquilo era algo meu também, que era sobre o que eu vivia. Isso faz uns quatro anos”.
Contudo Indira se assume mesmo enquanto feminista há mais ou menos um ano e meio. Ela diz que não conseguia se apropriar do termo porque achava que era coisa de burguesa. Mais tarde percebeu que já era feminista em suas ações bem antes de conhecer o que o movimento de fato significava. “Feminismo pra mim é o que eu faço no meu dia a dia, mais do que um livro pode me ensinar”, diz.
Intolerância religiosa dentro da periferia
Um levantamento feito para a UNAS mostrou que 70% das pessoas que trabalham na entidade são evangélicas. Segundo o IBGE, São Paulo tem 2,4 milhões de evangélicos, 22% do total de habitantes da cidade.
Indira conta que a proporção de evangélicos na UNAS se dá pela forte presença da religião na periferia. E ela está certa, uma pesquisa do IBOPE de 2013 demonstrou que quanto mais distante do centro, maior a concentração de evangélicos. Há bairros no extremo da zona leste em que a proporção chega a ser de 12 vezes mais evangélicos do que em distritos centrais.
A educadora, que é do Candomblé, diz que não existe nenhuma religião melhor que a outra ou ruim, o que preocupa é o conservadorismo e intolerância que alguns pastores pregam inclusive a religiões de matriz africana. “A gente observou esses dados e vimos que temos que dialogar com estas pessoas para que elas não misturem a fé individual no trabalho que fazem. É complicado... Vejo muitos pastores querendo convencer pessoas tapando seus olhos para outros conhecimentos”.
Muitas mulheres evangélicas educadoras se negavam a discutir desigualdade de gênero dentro dos CCAs porque para elas “deus fez assim” e o que elas aprendem dentro da igreja tem que ser passado dentro da educação. Esse é um conflito que também acontece com algumas famílias das crianças e adolescentes.
No primeiro mês que Indira começou a dar aula no CCA Imperador aconteceu um burburinho de algumas crianças não quererem mais ter aula com ela porque ela era macumbeira. Já que toda sexta-feira ela vai vestida de branco em respeito à sua religião – no Candomblé, a cor branca representa Oxalá e seu dia é sexta-feira, assim, todos seus filhos devem usar branco em sinal de respeito e também de proteção.
Indira não se identifica como negra, apesar de não ter a pele clara e os cabelos lisos, mas contou que a perseguição contra o Candomblé tem um fundo forte de racismo já que além de ser uma religião da cultura africana, tem muitas pessoas negras que a seguem justamente por conta da ancestralidade e da vontade de reencontrar suas raízes.
De acordo com o Censo do IBGE, 0,63% da população brasileira é adepta de religiões de origem africana, contudo, elas são as que mais sofrem discriminação. Os dados do Disque Direitos Humanos, da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, mostram que de 2011 a 2014, 35% das vítimas de intolerância religiosa eram de matriz africana. Independente da religião, as pessoas negras (pretas e pardas) foram as mais afetadas, sendo 60% dentre as que declararam cor e 35,2% do total.
Numa tentativa de resolver o problema da intolerância religiosa, Indira reuniu as crianças e pediu para que cada uma trouxesse uma música de sua religião, para que fizessem uma roda com o objetivo de conhecer as diferentes culturas presentes ali. “Tinha outra professora que era evangélica e foi uma coisa bastante rica em diversidade e diferente pontos de vista. Os meninos e meninas adoraram conhecer outras perspectivas de mundo”.
Ela afirma que é um trabalho duro, que não se resolve do dia para noite, mas que não enxerga outro meio de mudança social senão pelo viés socioeducativo, principalmente com crianças e adolescentes. Depois de dois anos como educadora dentro do Movimento de Mulheres no CCA, ela já consegue ver um bom resultado, ainda que falte muito.
A formação política e feminista das mulheres do Heliópolis
Crédito: Divulgação / Legenda: Movimento de Mulheres de Heliópolis e Região na 5 Conferência Municipal de Politicas para as Mulheres
As ações do Movimento de mulheres não param nos CCAs e nas rodas de conversas mensais. As coordenadoras buscaram projetos de politização feminista e empoderamento feminino para conseguir chegar em mais mulheres do bairro.
Em meio a esses quatro anos de movimentação política feminista, elas organizaram dois cursos anuais, em parceria com o governo federal, muito importantes para a formação destas mulheres.
O primeiro curso foi sobre Mulheres nos Espaços de Poder e Decisão. O projeto consistiu em abrir 15 vagas para mulheres em todos os CCAs e discutir ao longo do ano o movimento feminista, sua história, a representação política da mulher, controle social, diversas configurações de família, dentre outros temas que as coordenadoras do Movimento de Mulheres separaram para fazer o programa.
Ao final do curso, as mulheres que participaram foram indicadas para serem representantes em diversos núcleos, como nos conselhos participativos da saúde, da educação, de moradia. “Para uma mulher que vive em sua casa e não tem como debater com seu marido, ser representante do Heliópolis ou do Ipiranga num conselho de saúde é uma coisa muito grande. É um espaço de fala, uma representante do povo”, explica Indira.
As mulheres que participaram desses projetos era as mães dos alunos e alunas dos CCAs e também mulheres que faziam parte do MOVA, que tinham por volta de 60 anos e nunca tinham pegado num lápis para escrever. “Foi muito bom trabalhar com essa mulheres, porque elas já sabiam de muita coisa, como por exemplo os sintomas de um relacionamento abusivo – só não sabiam que esse era o nome. Foram trocas maravilhosas”.
O segundo curso foi sobre empoderamento, voltado especificamente para as mães dos meninos e meninas que participam do SMSE-MA. Quem organizou e participou deste programa junto a 80 mulheres foi a Priscila. “A gente se reunia uma vez por semana durante quase um ano, mas era muito difícil que elas falassem no começo. Muitas iam obrigadas, outras abandonaram no meio. Elas tinham muita vergonha, tinham vergonha de falar quem era seu filho e sentiam culpa ao mesmo tempo. A maioria estava passando por um processo interno muito delicado”.
Priscila conta que foi necessário apresentar oficinas de coisas práticas para prender a atenção delas durante algumas reuniões. Como a maior parte delas não trabalhava, ela chegou a organizar uma oficina para que elas aprendessem a fazer salgado e ovo de páscoa e ganhassem alguma renda.
Conforme foi passando o tempo algumas se sentiam mais a vontade pra desabafar, o que incentivava as demais. Priscila disse que nem conseguiu passar o conteúdo que havia preparado, “eu ficava ali apenas ouvindo e prestando atenção, quando tinha algum espaço conseguia associar muitas das coisas que elas falavam da própria vivência delas com o feminismo. E foi muito bacana”.
Nos últimos encontros as mulheres já estavam falando mais e na despedida do curso chegaram a gravar um vídeo de agradecimento por terem ganhado um espaço para poder falar, afirmando que tudo aquilo tinha feito muito bem a elas.
Ao longo dos encontros, enquanto elas iam conversando, desabafando e construindo, talvez sem perceberem de pronto, um círculo forte de confiança, suas mãos costuravam algo muito simbólico: a bandeira de tecido do Movimento de Mulheres do Heliópolis, na qual está escrito, “Enquanto houver vida, haverá revolução”.